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O trabalho musical de Keita Mayanda pode não estar muito disseminado por aqui, mas esse rapper angolano tem muita história pra contar da sua relação com o Brasil. Membro da etnia Kimbundo, cresceu na Luanda dos anos 80, escutando a variada seleção de música brasileira que tocava por lá. É fã do manguebit e visita São Paulo regularmente: nos últimos quatro anos, esteve nove vezes na cidade com a qual mantém uma relação “irracional”, como ele mesmo diz. A última vez foi em janeiro de 2013, quando a Kultafro travou um contato inicial com o artista. Atualmente trabalhando em seu segundo CD solo, Keita antecipa um pouco do que vem por aí no seu novo trabalho, além de compartilhar conosco algumas informações quanto ao seu processo de criação, o mercado musical independente e sobre questões “afro-africanas-contemporâneas”.

Kultafro – Conte um pouco da sua história com o rap e com a música de Angola e Brasil?O trabalho musical de Keita Mayanda pode não estar muito disseminado por aqui, mas esse rapper angolano tem muita história pra contar da sua relação com o Brasil. Membro da etnia Kimbundo, cresceu na Luanda dos anos 80, escutando a variada seleção de música brasileira que tocava por lá. É fã do manguebit e visita São Paulo regularmente: nos últimos quatro anos, esteve nove vezes na cidade com a qual mantém uma relação “irracional”, como ele mesmo diz. A última vez foi em janeiro de 2013, quando a Kultafro travou um contato inicial com o artista. Atualmente trabalhando em seu segundo CD solo, Keita antecipa um pouco do que vem por aí no seu novo trabalho, além de compartilhar conosco algumas informações quanto ao seu processo de criação, o mercado musical independente e sobre questões “afro-africanas-contemporâneas”.

Keita Mayanda – Meu envolvimento com o rap como rapper começou por volta de 1993, um caderno com versos, um amigo do bairro com quem ouvia música rap, que era difícil de encontrar em cassete ou mesmo ouvir em qualquer estação de rádio. Juntei-me a um grupo de amigos com quem trocava gibis e formei meu primeiro grupo “Soldados do Guetto”, anos depois, com 16 anos e mais envolvido com o movimento hip-hop em Luanda, comecei a definir um estilo, um método, um rap mais politizado, mais virado paras as questões sociais. No início dos anos 2000, depois de uma temporada em Portugal, e de haver gravado dois álbuns lá com o coletivo Onjango e com o meu grupo, o Conjunto Ngonguenha, comecei a preparar o meu primeiro CD solo, “O Homem e o Artista”, que foi lançado em Julho de 2006.

A música do Brasil sempre esteve presente o primeiro rap que ouvi na língua portuguesa foi do Racionais MCs, em Angola sempre se ouviu muita música brasileira, eu cresci nos anos 80, então cresci ouvindo Tim Maia, Agepê, Martinho da Vila, Roberto Carlos…

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Kultafro – Você parece ter escolhido o Brasil como destino recorrente para se atualizar e interagir com a cena cultural daqui. Por que essa escolha? O que mais te atrai na cena de São Paulo e quais as outras cenas brasileiras que te chamam a atenção?

Keita Mayanda – São Paulo é das cidades culturalmente mais efervescentes, criativas, estimulantes, ir de férias ou a trabalho sempre me permitiu aprender mais sobre como desenvolver projetos culturais e como o DNA de uma cidade pode estar intimamente ligado ou completamente definido pela sua produção cultural, se eu fosse espírita eu diria que já vivi em São Paulo noutra vida. A minha identificação com a cidade, com as pessoas, com o estilo de vida é irracional. A cada vez que volto (já estive nove vezes nos últimos quatro anos), a minha paixão por Sampa aumenta, o que me atrai é a diversidade a democracia cultural da cena paulistana, os eventos “catraca livre”, o fato de haver um espaço para todos os gostos. Eu conheço Rio de Janeiro e Salvador, mas não tão bem quanto Sampa. Mas a cena recifense – o manguebeat -, é uma das minhas paixões brasileiras. No Rio, eu gosto da Lapa e de várias coisas que surgiram de lá, tenho pena de nunca ter ido ao Circo Voador.

Kultafro – Nota-se uma grande influência do Jazz no seu primeiro álbum e a preferência por fazer versos em português às línguas tradicionais. Por que essa escolha?

Keita Mayanda – Eu adoro black music em todas as suas formas. O jazz é historicamente uma das principais influências do hip-hop, o flerte entre os dois estilos já produziu bastante inovação, quer seja o hip-hop incorporando jazz e, atualmente, acontece bastante o inverso: é só ver artistas como Daryl Reeves, Robert Glasper, José James. A língua portuguesa tem a facilidade de ser mais universal do que o Kimbundu, que é a língua da minha etnia, se fizesse rap preferencialmente em Kimbundu, a minha audiência seria menor do que é hoje. O fato de estar a fazer essa entrevista deriva do fato de você poder entender o que digo, porque a língua usada permite que eu seja entendido no Brasil, em Timor, na Guiné Bissau ou em Moçambique e a possibilidade de poder comunicar com comunidades tão diversas ao mesmo tempo historicamente ligadas é importante pra mim.

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Kultafro – Como artista solo e integrante do Conjunto Nonguenha, empreendedores de suas próprias trajetórias artísticas, na sua opinião, quais são os desafios de músicos que são ao mesmo tempo independentes e auto-agenciados no mercado angolano e fora dele?

Keita Mayanda – Penso que o maior desafio de um músico independente é ter exposição sem se moldar às exigências da indústria e por indústria entendo os meios (rádios, TVs), entendo as empresas ou pessoas que produzem os shows e que contratam artistas para esse efeito e, por fim, as editoras, que muitas vezes vêm os artistas independentes como um incômodo.  Acho que em todo o mundo a dinâmica de produção, distribuição e venda de música mudou bastante desde a última década, os artistas buscaram e têm cada vez mais controle sobre a sua criação, e também sobre toda a renda que é gerada – não apenas com a música, mas também com merchandising e publicidade.

Kultafro – Conte-nos sobre a Editora/Produtora Wakuti Música e o estúdio que você e os seus companheiros de grupo mantêm. Quando surgiu, que trabalhos já realizaram e que perspectivas futuras vocês tem?

Keita Mayanda – A Wakuti Música é uma editora pequena, temos um estúdio, onde gravamos parte de algumas músicas do primeiro CD do Conjunto Ngonguenha e a quase totalidade do segundo, onde gravei inteiramente o meu primeiro CD, o Leonardo Wawuti gravou o seu segundo CD. Já gravamos outros artistas, mas não é uma atividade lucrativa ainda, porque usamos apenas como base para o nosso trabalho. Somos quatro artistas solo na editora, 7 Xagas, Leonardo Wawuti, Conductor e eu, sendo que os últimos três fazemos parte do Conjunto Ngonguenha que também faz parte da editora. Temos três CDs lançados e esse ano provavelmente sairão mais três sendo que um deles em plataforma digital no sistema de download gratuito.

Kultafro – O seu segundo trabalho solo está previsto para 2013. O que o público do Brasil e do mundo pode esperar dele?

Keita Mayanda – O meu segundo CD solo vai intitular-se “Anos Luz – Introdução ao Afrofuturismo”. O conceito é bastante influenciado pelo movimento iniciado pelo jazzista Sun Ra e que no Brasil tem representantes como Jorge Ben Jor ou mesmo Nação Zumbi, em termos de estética musical que busca unir os conceitos de ancestralidade africana com ficção científica, existe na música, existe na literatura, no cinema, nas artes visuais, o afrofuturismo como conceito de um desenvolvimento científico, político, artístico, filosófico de matriz afro. Em termos sonoros, eu vou fazer um revival do hip-hop da primeira metade da década de 90 (a “golden age”). Em termos de temática, vai gravitar à volta das questões afro-africanas-contemporâneas como identidade, desenvolvimento sustentável e filosofia moderna africana.

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Kultafro – Ouvindo seu primeiro trabalho “O homem e o artista”, percebe-se que consegue trazer mensagens fortes, ásperas em muitos momentos, mas envoltas por sons leves e líricos. Você atribui esta qualidade ao fato de ter encontrado a literatura e poesia antes da música ou às suas influências musicais?

Keita Mayanda – Eu sou grato a minha família, porque permitiu-me desde cedo ter contato com livros e ter incentivo pra ler, acho que em primeiro lugar foi influência literária, mas hoje tudo que eu ouvi em termos de música tem uma influência mais forte, apesar de continuar a buscar um caminho lírico e a moldá-lo de acordo com o que me influencia diariamente, porque eu sou compositor antes de ser rapper.

Kultafro – No seu primeiro trabalho você utiliza um instrumento típico da sua cultura, como a Marimba. Em outros estilos do país (Angola), como a música eletrônica, esses instrumentos também marcam presença. No Brasil, o rap se apropria de instrumentos percussivos típicos, como o Berimbau. Fale um pouco sobre essas influências de raiz na sua música e se pretende continuar a utilizá-los no seu próximo trabalho.

Keita Mayanda – Eu pesquiso bastante a cultura angolana, ela é uma das bases da minha música quer em termos líricos como sonoros, procuro trazer a cultura musical e literária do meu país nos meus trabalhos, acho importante que se divulgue mesmo dentro de Angola, toda a produção cultural das gerações passadas, quer urbanas como rurais é uma fonte boa de criação e é uma forma de trazer propostas inovadoras calcadas no passado, hoje muitos artistas perceberam o quão importante e criativo pode ser o contato com as formas de produção do passado, por isso surgiu o revival do soul com bandas como Dap Kings, Amy Winehouse, Charles Bradley (que eu vi ao vivo na Virada Cultural de 2012) que trouxeram a sonoridade das décadas de 60 e 70, nós fazemos isso no rap, principalmente nos CDs do Conjunto Ngoguenha.

Kultafro – O rap brasileiro é recheado de expressões locais criadas nas próprias “quebradas” (as gírias), ou seja, as regiões de onde os músicos ou grupos são oriundos. E também existem as expressões utilizadas de uma forma geral. Na cena de hip-hop angolana as gírias também estão presentes?

Keita Mayanda – O hip hop, seja onde ele estiver, é fortemente influenciado pela linguagem coloquial, pelo calão ou gíria locais, em Angola também é assim, no meu trabalho os maiores exemplo disso encontram-se no meu trabalho com o Conjunto Ngonguenha (ngonguenha é uma expressão típica de Luanda, é um tipo de refeição fácil que se faz em geral no lanche e que nós usamos como nome do grupo por sarcasmo).

Kultafro – Suas músicas contam muito da realidade social e política de Angola, assim como o rap brasileiro também o faz, até mesmo por essência do estilo. Como o mercado de música recebe letras críticas, há espaço de uma forma geral para o estilo?

Keita Mayanda – Existem dois universos no rap angolano, para a mídia e para o público: o rap engajado, político, underground ou alternativo e o rap comercial. O tratamento que a mídia dá aos dois grupos é diferenciado, um rapper que faz música comercial ou que não seja crítico do regime tem mais facilmente acesso à mídia estatal, aos melhores shows, aos melhores contratos com editoras. Mas existe espaço para todos circularem mesmo na mídia, o rap underground sempre circulou de maneira alternativa à grande mídia e vai continuar sendo assim, quer seja por escassez, quer seja por opção dos artistas em se manterem longe dos grandes veículos de comunicação.

Kultafro – Conte um pouco do seu processo criativo. Como nascem as rimas do seu rap e quais são suas principais inspirações?

Keita Mayanda – Eu começo quase invariavelmente por compor, antes da parte instrumental, eu sou um compositor antes de tudo. Mas escrevo em qualquer lugar ou circunstância, quase sempre tenho um tema, outras vezes vêm-me versos à cabeça e sigo o instinto, depois disso vem a fase de tentar casar letra e instrumental, estou nessa fase em relação ao meu novo trabalho. Envolvo sempre uma ou duas pessoas em todo o processo até a música estar gravada. Na verdade eu posso dizer que não tenho um método rígido, sigo mais o meu instinto.

Kultafro – Ainda sobre a questão de cenários musicais, quais lugares da cultura lusófona você já levou sua música?

Keita Mayanda – Portugal e Brasil. Tenho convites para Moçambique também. Falhei um festival em 2012, porque estava em SP na altura.

Kultafro – Tendo em vista que esta entrevista entra no site da Kultafro no mês das mulheres, queríamos que você nos falasse da sua perspectiva a respeito no seu país: para você, qual a importância da mulher Angolana tanto nas questões sociais/políticas quanto na música?

Keita Mayanda – Angola deve ser dos países que melhor defende os direitos das mulheres, não quero com isso dizer que as mulheres não tenham reclamações, que não se violem direitos, que não existe violência em que a mulher é a vítima, a posição da mulher não é diferente em Angola da maior parte dos países do mundo em muitos aspectos, mas em termos de representação política (nossos governos defendem cotas para representação feminina nos mais altos cargos ministeriais), em termos de direitos laborais (não existem diferenças salariais entre homens e mulheres), temos institutos e um ministério que cuidam das questões do gênero, maternidade, saúde feminina e representação jurídica da mulher no caso de conflito conjugal.

Fontewww.kultafro.com.br

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