«Rapper da Zona Norte fala sobre seu novo trabalho e defende o rap engajado»
Andando ao lado de Projota no Lauzane, bairro da zona Norte de São Paulo, era frequente encontrar alguns fãs que, embora tímidos, faziam questão de pedir um autógrafo e tirar uma foto ao lado do rapper. Atendendo a todos os pedidos de maneira solícita e simpática – embora raramente abra um sorriso em fotos, seja para as lentes dos fãs ou de fotógrafos profissionais -, Projota anda pelas ruas de seu bairro da mesma forma que rima em cima dos palcos: misturando alegria e uma certa melancolia, com orgulho de sua história e sua quebrada mas consciente dos problemas sociais que se perpetuam ao redor
Após lançar em 2011 o EP Projeção Para Elas e a mixtape Não Há Melhor Lugar No Mundo Que O Nosso Lugar, Projota se prepara para a chegada de seu trabalho mais importante até o momento: seu primeiro DVD, Realizando Sonhos, gravado em Curitiba em novembro de 2011 com um público estimado de 4 mil pessoas. Em entrevista exclusiva à SOMA, Projota falou sobre a expectativa para o lançamento e recontou sua trajetória de garoto roqueiro a rapper engajado, afirmando que o Brasil nunca precisou tanto do rap – como música e como artilharia de combate em meio a injustiças sociais camufladas.
Nesse primeiro semestre você lança um DVD com a gravação de um show em curitiba. Como foi a produção desse material?
Quando começamos a fazer shows em Curitiba percebemos um potencial absurdo de um público apaixonado por rap. As pessoas conhecem não só as minhas músicas como todas as faixas do Kamau, do Rashid, do Emicida, do Marechal, enfim, de uma galera que não é de lá. Muitas vezes artistas daqui vão pra lá pela primeira vez e se deparam com 2 mil pessoas que sabem todas as músicas de cor. A cena é brutal, então quando recebi um convite para tocar lá foi natural pensar na gravação de um DVD. Daí começamos também a pensar em quem poderia aparecer nesse show, e conseguimos chamar o André Maine, do Strike, Caíque, Emicida, Flora Matos, Kamau, Marechal, Max B.O, Karol Conká, Rashid e Terceira Safra.
Nem acreditei quando vi que juntamos 4 mil pessoas para essa gravação. É a prova mesmo de que o rap está forte e só tende a crescer. Quando comecei a cantar “Desci a ladeira” [primeira música da mixtape Não Há Melhor Lugar No Mundo Que O Nosso Lugar e faixa escolhida para o teaser do DVD] e vi o lugar indo abaixo, foi incrível ver aquela galera de todos os lugares e tipos curtindo o meu som. Foi como se eu visse a minha carreira toda ali, desde o começo mega difícil até hoje. Só quem acompanhou sabe.
E como foi esse início de trajetória? Quais foram as dificuldades?
Na real, comecei a minha carreira realmente do zero – sem exagero, posso dizer que quando decidi levar a sério uma vida no rap eu não só não tinha grana e material como não tinha conhecimento. Eu sou do Lauzane Paulista, na Zona norte, e eu e meus amigos interessados em rap não conseguíamos encontrar ninguém disposto a nos ensinar o caminho das pedras. Conhecíamos um grupo de caras que fazia rap na nossa quebrada, mas eles eram mais velhos e não rolava nenhum diálogo. Então ninguém virou pra mim e disse: cara, rap é assim. De cara, saquei que precisaria ralar se quisesse fazer algo realmente relevante.
Começamos oficialmente em 2002. Na época, passávamos pelas mesmas dificuldades que os caras que faziam rap nos anos 80: a gente catava um radinho, colocava a fita, pegava um microfone bem podre e velho e gravava uma voz, depois outra, até ficar audível. Como toco violão desde os 11, eu gravava o som dele no microfone, passava para outra fita, colocava a voz e quando finalmente conseguíamos chegar na terceira voz, o violão já tinha sumido (risos). Era algo artesanal e completamente sem noção, mas não queríamos desistir. Tivemos que aprender tudo na raça. Pra fazer o bumbo, por exemplo, a gente batia o microfone em uma caixa de sapatos e batíamos uma régua pra fazer a caixa. Ou seja, éramos completamente perdidos.
Depois conseguimos aprender a samplear sons, tipo pegar uma batida de um rap de outro cara e ir loopando ela usando a fita. Nossa vontade era tanta que caímos na ilusão da juventude de se achar pioneira: acredite, nós realmente acreditá- vamos que éramos os primeiros a fazer isso. Mas era uma parte deliciosa de se fazer rap: aprender na raça a transformar as histórias do nosso dia a dia em pequenos pedaços musicais. Nessa época eu ainda estava menos preocupado com uma teoria musical propriamente dita, mas foram os perrengues que fizeram a diferença pra minha maneira de ver o rap.
E o uso do computador, veio quando?
Ganhei meu primeiro computador aos 19 anos, um bem ruim, com um HD de 4Gb e outro de 8Gb. Era praticamente impossível usá-lo, mas tentamos. na época do nosso primeiro show, finalmente descobrimos o que provavelmente todo mundo já sabia: que na Galeria do Rock a galera vendia CDs com bases de rap. Daí foi a festa.Nna real, na internet você baixava um monte de base, mas a gente nem sabia que isso existia ainda.
Nessa época, o que você ouvia de rap nacional?
A minha rotina era a seguinte: a partir de uns 15 anos, comecei a pirar em Racionais, RZO. Daí me juntei com vários amigos da minha quebrada e começamos a ouvir das 18h até a meia noite o [programa] Espaço Rap da 105 FM. Depois de um tempo, começamos a ir atrás dos artistas que passavam na rádio e ouvíamos de tudo um pouco, obsessivamente, para conseguir mais repertório, mais histórias, mais bases.
De seis em seis meses o Espaço Rap lançava um CD com o que tocava na rádio, e isso também formou a gente demais. Facção Central, Realidade Cruel, Ex- pressão Ativa, Detentos do Rap… tudo veio da 105. Sempre que eu ouvia uma música desses caras, eu pegava um papel e tentava escrever alguma rima. O fazer rap, na real, é até fácil. É só escrever na métrica certa e com o BPM correto a história que você quer contar. não é um gênero musical que limite as pessoas, porque você pode escrever mesmo não tendo batida ainda. Exatamente por isso eu e meus amigos produzíamos muito, só na tentativa, no rabisco. Todo mundo que ouve rap já se pegou fazendo uma rima na cabeça. É uma linguagem da naturalidade, da realidade, que todo moleque saca.
O rap começou na sua vida aos 15, mas você comentou que aos 11 já tocava violão. Pensou em seguir algum outro estilo musical nessa época?
Certeza. Eu ouvia muito rock, por influência do meu irmão mais velho. Quando aprendi a tocar violão aos 11, eu nem ouvia rap. não tinha internet, então eu comprava revistinha de cifra e ficava tirando uns rocks. Eu tocava o que aparecia. Daí comecei a escre- ver rock, e aos 14 comecei a compor música evangélica, meio Oficina G3.
Adorava, fuçava absolutamente qualquer CD que eu ouvia por aí com os amigos. E mesmo quando fui pro rap eu ainda era muito fã de Linkin Park, Limp bizkit, Red Hot Chilli Peppers e Foo Fighters. Outra coisa que eu ouvia muito era MPB, pela minha mãe, e música nordestina e sertanejo, pelo meu pai. E por causa da minha quebrada, aqui na Zona Norte, eu ouvia demais samba. Samba do bar do fulano, da rodinha. Minha adolescência foi essa base de quermesse, de samba, de rodinha, qualquer batucada eu ia. O rap chegou tarde na minha vida, aos 16.
O que você queria falar no seu rap? Quais características definiram o seu estilo e te diferenciaram em meio a outros artistas?
Quando comecei, eu ouvia os caras e copiava pra caralho. Copiava tudo quanto era cara de rap que eu admirava. Com a 105 FM e o repertório dos meus amigos, criei um conhecimento bom de rap clássico – Racionais, RZO, Facção Central, Realidade Cruel e vários outros grupos. Daí chegou até mim um universo diferente: Kamau, Marechal, Quinto Andar, enfim, os caras do underground. Se os grupos clássicos defini- ram a mensagem que eu queria pra mim, esses caras me trouxeram noções de narrativa, de lirismo.
A partir dessa junção comecei a pensar em construir na minha cabeça o melhor MC do mundo, que seria uma mistura das melhores características de caras como brown, Helião, Kamau e Marechal. um super MC, que simbolizasse todas essas gerações. Foi a partir desse sonho que eu pensei em algo que eu considero o meu diferencial: saber juntar o velho (Racionais) com o novo (Kamau, Slim Rimografia) na minha trajetória.
Explico: um dia, o Brasil estava em um momento no qual ouvíamos muito SP Funk, por exemplo, que era uma forma auto referente de falar de rap: a minha rima faz isso, a minha rima faz aquilo, eu sou isso, eu simbolizo tal coisa…
O rap falando do rap.
Exato. Aí eu falei: cara, eu falo tanto aqui que a minha rima voa, mas no fim eu não estou falando merda nenhuma. Minha rima não tá voando nada! Por mais que eu respeite esse tipo de rap, não fazia mais sentido para mim ficar nessa auto referência eterna. De uma maneira clássica, o rap sempre tratou de uma narrativa de desigualdade, de realidade crua, de falar sobre favela, crime, problemas sociais, cotidiano, enfim, o ato de fazer poesia a partir do mundo real. Só que daí muita gente que chegou depois no rap decidiu deixar esses assuntos para trás, achando que eles tinham se esgotado e era preciso falar de outras coisas. Mas os caras lá atrás estavam certos: o social jamais termina. A injustiça não acaba nunca. Por mais que meu rap seja moderno, tenha a cara da molecada, eu quero falar daquilo que as pessoas não querem ver.
E você acha que de certa forma o rap abandonou esse compromisso inicial?
O rap em si não, mas muita gente achava que esses assuntos estavam ultrapassados. Tudo isso continua, todos os problemas sociais estão mais fortes do que nunca, e quem acha que acabou e que não faz mais sentido falar de injustiça política e social não está olhando para o que está acontecendo no brasil. Na real, quem fala que isso não é importante está interessado em que a situação fique como está. busquei minha forma de, com a minha lírica, resgatar esses assuntos. Hoje eu estou totalmente engajado.
Minha última mixtape, Não Há Lugar Melhor No Mundo Que O Nosso Lugar, é inteira sobre problemas sociais. Dinheiro (“no meu mundo dinheiro traz comida pra minha mesa, lá fora eu vi ele levando maldade e frieza / justiça só contra nós não é justiça, é ditadura”, em “Desci a ladeira”), transporte público (“que eu possa entrar e sair vivo de um metrô na Sé”, em “Rap do Ônibus”), crack (“ele é como um zumbi, mal lembra de quem deixou por aqui”, em “Resident Evil”)… eu faço música pra cima também, falo da parte legal de morar na quebrada, faço rap de mina. Mas a vida não é só isso. um dia você tá chorando e no outro está sorrin- do. Mas é besteira dizer que os problemas se foram e falar deles é algo datado. Eu quero que a minha música atinja todo mundo, e para isso preciso aprender a retratar todos os lados da vida. Isso é rap.
A música reflete a minha experiência de mundo mesmo, sobre o lado ruim e o lado bom da quebrada. Muito amigo meu passou fome, passou necessidade, sofreu preconceito, foi pro crime, caiu pro lado da ganância… Quem olha para o lado vê que continuamos com os mesmos problemas, e é preciso falar deles.
Você comentou que pensa em escrever para todo mundo. Em sua última mixtape por exemplo, você acha que consegue trazer seu tipo de narrativa pra muitas pessoas?
Esse CD é o que menos atingiria todo mundo. Ele não é um trabalho que um playboy iria se identificar. Tem só uma música de mina, uma música de amor. Ele é um disco bem paulista, sobre os problemas de SP. Hoje eu já tenho público, então quando eu fiz esse álbum eu pensei: firmeza, agora vocês estão me ouvindo? OK, então vou disparar todos os podres que sempre quis dizer sobre pobreza, sobre crack, sobre transporte público, sobre corrupção, sobre morte, tudo com uma sonoridade forte. Eu também curto fazer música de amor, que agrega um público pra gente, mas fiz isso mais no começo de carreira pensando em trazer pra mim uma galera que não obrigatoriamente me conhecia. É mais do que hora de a gente dar na cara das pessoas, falar pra todo mundo o que está rolando. Tem uma molecada que me ouve, cara de 13 anos, e eu quero criar consciência política nesse adoles- cente. Quando eu comecei a fazer rap, eu não pen- sava em nada. Só queria saber de ter uma moto, fazer rolê e pegar mina. Quero passar mensagem, quero jogar na cara.
Da minha geração de amigos, nenhum de nós entrou pro crime. E tínhamos absolutamente tudo para entrar: não pensávamos em nada sério, estávamos ali no meio de muita coisa suspeita… mas daí apareceu o rap. Mas cara, tem amigo meu, gente que eu conheço desde moleque, preso. Daí eu comecei a pensar muito no lance da minha música ter estourado no brasil inteiro, mas na minha quebrada ninguém ouvia. E eu queria, cada vez mais, fazer uma música que fizesse parte da vida desses moleques, e não dos boys. Quero escrever pra todo mundo, sim, mas do que adianta a minha mensagem não chegar para esses caras? Temos que trazer o rap pra quebrada de novo, porque o funk domina. Quero ver o rap de novo no poder na quebrada. Atingir os moleques que mais precisam da rima.
Fonte: www.soma.am